Caprichoso x Garantido: Bois-bumbás levam tecnologia e tradição ao Festival Folclórico de Parintins

Caprichoso e Garantido: um duelo de encher os olhos no Amazonas. Fotos: Helder Mourão

Marina Magalhães e Hélder Mourão (Colaboração)

Bafafanoticais (Especial/Bafafá Amazônia) – O bumbódromo de Parintins, ilha amazonense situada a 369 quilômetros da capital Manaus, foi palco da 57ª edição do Festival Folclórico nos últimos dia 28, 29 e 30 de junho. Também chamada de Ilha da Magia, Parintins é mundialmente conhecida pela tradicional disputa entre os bois-bumbás Caprichoso e Garantido, que este ano levaram para a arena um show de cores, tecnologia, dança, cenografia e musicalidade. O município recebeu cerca de 120 mil visitantes na edição deste ano, o que fez dobrar a população local na ilha durante a semana do evento.

Campeão das duas últimas edições do festival (2022 e 2023), o boi Caprichoso, nascido em 1913, no bairro da Francesa, pelas mãos de muitas famílias (Roque e Ednelza Cid, Luiz Gonzaga e Luiz Pereira, Dora e Chica, Joãos e Marias, como expressões do coletivo), elegeu como tema “Cultura – O triunfo do povo” e conquistou o esperado tricampeonato. A escolha do presidente Rossy Amoedo e da comissão artística da agremiação investiu na exaltação da cultura local, das encantarias e mistérios do território sagrado de Parintins e da resistência e diversidade dos povos da floresta Amazônica. 

“Este ano o Caprichoso trouxe essa proposta e acho que nós conseguimos levar para a arena tudo o que propusemos: um espetáculo empolgante, visualmente belo, muito bem amarrado tecnicamente. Fico muito feliz com o resultado final deste trabalho e da temática. Nós temos um time incrível e estar fazendo parte do time que constrói essa festa é muito maravilhoso”, avalia Adriano Canto, artista do boi Caprichoso que assinou os figurinos dos itens individuais sinhazinha da fazenda e amo do boi. “Eu me sinto honrado em poder assinar um figurino, acredito que todo parintinense tem vontade de participar da festa desse jeito”. 

Boi Garantido: bela apresentação que empolgou o público no Festival Folclórico de Parintins. Foto: Hélder Mourão

Com o tema “Segredos do Coração”, o boi Garantido, sob nova direção do presidente Fred Góes, trouxe os espetáculos das três noites ancorados na valorização da ancestralidade dos povos originários, dos sabores tradicionais dos povos ribeirinhos e no resgate histórico do boi da Baixa de São José, nascido em uma vila de pescadores por iniciativa da família de Lindolfo Monteverde. Nesta edição, os segredos do coração revelaram no festival a origem da Amazônia e como ela surgiu, contada a partir do mito do povo indígena Sateré-Mawé.

Para o coordenador de alegoria do Garantido, Sorin Sena, o Festival Folclórico de Parintins vem passando por grandes transformações e a cada ano está ficando mais profissional. “Esse ano não foi diferente, as duas agremiações apresentaram um belíssimo espetáculo dentro do bumbódromo. Eu tive este ano a experiência de ser coordenador de alegoria do Garantido, que foi a coisa mais fantástica da minha carreira profissional. O Garantido apresentou um grande espetáculo”, afirma Sena.

Evolução do Caprichoso

Na primeira noite de apresentação, na sexta-feira (28 de junho), o Boi-Bumbá Caprichoso protagonizou uma celebração da herança cultural da Amazônia brasileira. A abertura, intitulada “Raízes: o entrelaçar de gentes e lutas”, enalteceu a sinergia entre negros, indígenas, ribeirinhos e mestres da cultura popular, reverenciando as tradições ancestrais. O item Lenda Amazônica, um dos mais aguardados do festival, levou à arena a apresentação “Dona da Noite”, do artista Roberto Reis, seguida pela evolução da Cunhã-Poranga Marciele Albuquerque, que em sua performance se transformou em uma serpente no centro do bumbódromo.

Ainda na primeira noite, em que venceu com 419,8 pontos contra 419,7 do boi Garantido – uma diferença de apenas um décimo –, o Caprichoso encenou a “Celebração Indígena Djuena”, com a participação do pajé Erick Beltrão cercado por módulos representando mulheres aves. Na chamada ópera do boi, a cena do “O Tambor da Terra” destacou a coreografia dos povos indígenas e contou com a participação de lideranças indígenas e dos tuxauas. 

Na segunda noite do festival, o sábado (29 de junho), o Caprichoso teve como base a temática “Tradições: o flamejar da resistência popular”, dando ênfase a grandes nomes e momentos tradicionais da festa do boi-bumbá.  Entre os itens coletivos do espetáculo, a figura típica regional levou para a arena “O Pescador da Amazônia”, personagem caboclo dos beiradões, das comunidades rurais, dos bairros de Parintins e dos ambientes azulados que fazem parte do Povo Caprichoso. A apresentação do segundo dia empatou com a do boi Garantido, ambos conquistando 419,8 pontos. 

No domingo (30 de junho), terceira noite de apresentação, o Caprichoso se inspirou no ideário “Saberes: O Reflorestar das Consciências”, fechando o festival de Parintins. O processo criativo se amparou na obra do pensador indígena Ailton Krenak no tocante ao processo de reflorestar o mundo, por meio de pensamentos, ideias e mudanças de atitudes da humanidade, ressaltados em vários momentos alegóricos, cênicos e coreográficos. 

O item figura típica regional evidenciou o “Sacaca”, conhecido como o curador da Amazônia, contextualizado em cena com o potencial de curar o planeta da cobiça e da ganância humana. Outro destaque da noite foi o ritual indígena de cura da terra, da etnia Awa Guajá. 

Para fechar o último dia de apresentação, em que empatou novamente com o Garantido (desta vez com 419,7 pontos cada), o boi-bumbá Caprichoso reuniu em sua apoteose, sob a liderança do presidente Rossy Amoedo, artistas, ajudantes, paikicés (operários que levam as alegorias para a arena), brincantes, diretores, itens e outros colaboradores da construção do espetáculo. Com o resultado das três noites, o boi-bumbá venceu o Festival Folclórico de Parintins por apenas um décimo de diferença do “boi contrário” somando 1259,3 pontos (contra 1259,2 pontos do Garantido).

O tricampeonato do boi azul e branco foi conquistado pela aposta em corpos artísticos que bailavam pelos ares, projeções de luzes e recursos tecnológicos como drones, borboletas gigantes voando sobre a Marujada (grupo de percussão rítmica) e outras inovações em diálogo com a valorização dos mestres e mestras da cultura e com a presença de convidados especiais da Amazônia na arena, como Angela Mendes (filha de Chico Mendes), o líder Yanomami Davi Kopenawa e o líder indígena Beto Marubo (integrante da União dos Povos Indígenas do Vale do Javari – Univaja). 

Evolução do Garantido

Na noite de abertura do festival, o boi Garantido se apresentou no segundo tempo da programação com um espetáculo ancorado no subtema “A origem da vida”, com inspiração na resistência e sabedoria do povo Sateré-Mawé, uma das maiores etnias indígenas do país. A cunhã-poranga e ex-BBB Isabelle Nogueira, um dos itens mais aguardados da noite, estreou nesta edição no meio da alegoria “Noçokem”, em uma evolução marcada pelo devir onça pintada. 

Como figura típica regional, o boi investiu na representatividade dos ribeirinhos, levando à arena uma alegoria sobre Alexandrina Monteverde, mulher negra, religiosa, artesã, parteira e rezadeira, que ajudou o filho Lindolfo a produzir o primeiro boizinho da promessa, arrumou as fantasias e o terreiro para as origens do Garantido. Outro destaque da primeira noite vermelha e branca foi a entrada do pajé Adriano Paketá, em meio ao ritual indígena “Transcendência Kanamari”, em uma alegoria que estampava animais e poderes sobrenaturais.

“O Garantido tratou sobre a origem da Amazônia, a menina dos olhos do mundo. Mostrou em suas lendas, figuras típicas, ritual e em vários momentos do espetáculo essa relação de origem da Amazônia, do homem amazônida e das relações que ele estabelece com a natureza. Mostrou a diversidade tanto humana como biológica, linguística e cultural, a riqueza da Amazônia, como ela foi criada”, explica um dos membros da Comissão de Artes do boi-bumbá, a professora Hellen Picanço, doutora em Linguística e pesquisadora dos povos indígenas. 

Já na segunda noite do Garantido no bumbódromo, com o tema “A cidade de Lindolfo”, fundador do boi da Baixa, os destaques ficaram por conta do ritual indígena Huni Kuin, focado na apresentação de um mundo “sem males”, e da performance do amo do boi João Paulo Farias. Em seus versos, JP resgatou a história de um terceiro bumbá da ilha de Parintins, o boi Campineiro, que não faz parte da disputa polarizada entre Garantido e Caprichoso. 

“O espetáculo tratou da ancestralidade afro-indígena em que mostramos principalmente a descendência do boi Garantido, da família de Lindolfo Monteverde e da figura da Dona Xanda, mãe dele. Mostramos que a área da baixa de São José era um aquilombamento afro-indígena.  Então, buscamos mostrar toda essa força da ancestralidade que constrói o boi e os povos da Amazônia e que fortalece a sua identidade indígena, negra, o boi e aquele que aqui vive”, acrescenta Picanço, que é professora e coordenadora do curso de Jornalismo da Universidade Federal do Amazonas (UFAM), Campus Parintins.

A terceira e última noite do boi vermelho e branco, em torno do segredo da esperança, teve como inspiração o livro “O futuro é ancestral”, do escritor indígena Ailton Krenak, dando ênfase à valorização dos saberes dos povos ancestrais na busca por uma nova ideia de humanidade e um novo amanhã. Um dos pontos altos da apresentação foi o ritual “Jeroki Kaiowá”, do povo Guarani dos Kaiowá. A partir dele, o corpo artístico buscou retratar o exemplo de esperança da etnia, mesmo diante da ameaça de invasores dos seus territórios.

“Na terceira a noite veio a esperança de uma Amazônia que vai sobreviver e manter toda a sua diversidade e riqueza. Então o tema “o futuro é ancestral” mostrou que podemos cuidar, lutar contra os males que atacam a Amazônia para que ela sobreviva, olhando para a nossa ancestralidade. Assim, o boi trouxe uma noite de esperança em suas lendas e rituais, revelando como o homem da Amazônia tanto cuida há todo esse tempo do território. Este é o segredo para que a gente possa preservar, olhar para essas relações de preservação e mantê-las”, conclui a professora e integrante da comissão artística do boi Garantido.

Sobre o Festival Folclórico

O duelo a céu aberto entre o Boi Garantido e o Boi Caprichoso acontece todos anos, há 57 edições, sempre no final do mês de junho, no bumbódromo de Parintins, que recebe 35 mil espectadores em cada dia de evento. A disputa em forma de espetáculo entre os dois bois é decidida por uma comissão de jurados que avaliam 21 itens, divididos em três blocos: a) Comum/Musical; b) Cênico/Coreográfico; c) Artístico.

Os itens que recebem notas são os seguintes: apresentador, levantador de toadas, batucada (Garantido)/ marujada (Caprichoso), ritual indígena, porta-estandarte, amo do boi, sinhazinha da fazenda, rainha do folclore, cunhã-poranga, boi bumbá evolução (tripa do boi), toada, pajé, povos indígenas, tuxauas, figura típica regional, alegorias, lenda amazônica, vaqueirada, galera, coreografia e organização do conjunto folclórico. No processo de avaliação, cada item é avaliado por três jurados a cada noite. A menor nota recebida entre as três atribuídas pelos jurados é descartada para cada boi na contagem final dos pontos.

O Festival Folclórico de Parintins 2024 consagrou a 24ª vitória do Boi Caprichoso, invicto nas três últimas edições, mas o Boi Garantido segue na liderança histórica da disputa, somando 32 títulos. Em 2020, a disputa entre os bois resultou em empate, o que por um décimo não ocorreu novamente este ano. Com o fim desta edição do festival, já começou a disputa dos turistas para reservar as suas acomodações na Ilha da Magia para participar do evento cultural no ano que vem. 

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Fotos: Helder Mourão