A TATUAGEM SONORA DE ARTANE

A cantora potiguar Artane Inarde, lançou o trabalho “Tatuagem” e chega para interagir com cena paraibana. Foto: Divulgação

Por Luciana Gomes Cerqueira*

Diante da possibilidade de ouvir o canto mortal das sereias, Ulisses não quis ser surdo, mas pediu pra ser amarrado ao mastro do navio para assim poder ouvir e contemplar aquele som divino… Mas será que realmente o canto das sereias mata? Ou apenas faz aqueles que as ouvem desejarem ser seduzidos, por se sentirem atraídos por uma identidade misteriosa e diferente do já tão conhecido….? Quantos se jogam ao mar racionalmente decididos a se mudar para o mundo das ondas (sonoras e marítimas) das Sereias…?

É preciso entrega para ouvir uma voz que traz uma experiência diferente de sabor, de saber, que por muito tempo era cantada para ouvidos preconceituosos e surdos, pois estes já chegavam cheios de cera… As sereias são canto e corpo, sentidos e imagem, símbolo e figura escolhida por muitos para enfeitar a pele…. Não negam suas escamas, suas heranças, seus locais de nascimento, sua voz sedutora, nem calam sobre as histórias que têm para contar….

Artane: música e poesia

Estamos num momento muito especial, ouvindo mulheres fortes falando verdades que seduzem milhões, e cantando sem seguir os velhos padrões, exatamente como as Sereias. Cantam verdades sufocadas com um sotaque na voz que finalmente começa a ser recebido sem cera nem espinhos.

Agora não há mais medo, muitos pulam no mar em busca desse conhecimento e dos ventos que trazem novos tempos, por meio desse canto. Surgem vozes para cantar uma nova identidade que se (re)constrói enfim, se livrando de antigos estereótipos e traumas marcados pelo antigo silêncio, sutilmente imposto.
Canta, ó Juliette, ó Duda Beat, e muitas outras mulheres, musas e sereias arretadas.
Uma sereia em especial tem arrepiado a minha pele: Artane Inarde.

Pela sua grande habilidade em lidar com as palavras, como poetisa, e agora fazendo o mesmo ao se lançar cantora, com a música “Tatuagem”.

A letra já no início demarca a mulher tendo a posse de seu desejo, despertado pela tatuagem presente no corpo do outro. Substitui a musa por muso, que inspira bonitas construções sonoras e cujo refrão soa também como tatuagem, demarcando uma harmonia que traz, por todo o corpo rítmico da música, o sotaque como um “Eu lírico” que surge propositadamente com a marca da vivência nordestina, ficando tatuada no ouvido da gente, feito voz lançada em onda do mar.

A letra de “Tatuagem” traz em si mesmo tanto a ideia do símbolo gravado no corpo, quanto a indagação de mistério que a tatuagem provoca. A Poetisa, que grava com tinta seus versos em páginas de livros, agora também é marcante em seu estréia na música, desenhando intenções, cantando com a própria pele de sereia nordestina, mas sem precisar cair na armadilha do cordel, de gírias, expressões ou imagens de Luar e Sertão para demonstrar regionalismo.

Lógico que apenas Ulisses poderia confirmar, mas tenho quase certeza que foi essa música que ele ouviu na ocasião em que, mesmo amarrado, tentou ir ao encontro das sereias. Os versos da Odisséia não revelam, mas tenho certeza que Ulisses, após tantos anos em viagens e aventuras marcantes, também tinha as suas tatuagens. E tal como na letra composta por Artane, as sereias, como boas feministas, cantaram que o Odisseu “Dá vontade de provar…”

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*Luciana Gomes Cerqueira é Mestre em Semiologia pela UFRJ, com bacharelado e licenciatura em Português e Literaturas de Língua Portuguesa realizados na mesma instituição. Dramaturga, em 2018 também ganhou o prêmio Revelação pelo Aldeia Sesc, por seu trabalho “Wonderland no divã: Um encontro entre Freud e Alice no País das Maravilhas” como diretora e dramaturga do grupo de Teatro do Lyceu Paraibano